sexta-feira, 29 de julho de 2011

Meu Amigo Carlos

Ele tinha quinze anos quando o conheci, entretanto sua mentalidade era a de um menino de dez.
Os moleques da vila onde morávamos não gostavam dele e chamavam-no de bobo, minha mãe dizia que ele era deficiente e não bobo.
Morava com a mãe, em uma casinha a dois quarteirões da minha, e não se lembrava do pai, que foi embora com outra mulher quando ele tinha apenas dois anos.
A primeira vez que tivemos contato foi na feira. Eu estava comendo pastéis com minha mãe, quando ele se aproximou da barraca e ficou babando pelo pastel que eu segurava. Tive muito nojo dele naquele dia.
- Me paga um pastel – pediu, com sua voz pastosa.
Minha mãe comprou um pastel para ele. Ele enfiou inteiro na boca, mastigou com ela aberta, engoliu e sorriu. Eu tinha doze anos e ainda não sabia que algumas pessoas passavam necessidades ou tinham problemas.
Dias depois nos encontramos novamente, eu estava indo jogar bola quando ele começou a me seguir. No princípio fiquei com medo, mas depois fiquei à vontade quando ele me agradeceu pelo pastel que comera dias antes. Disse-me que tinha pássaros e me perguntou se eu também tinha.
- Não – respondi mentindo.
Quando chegamos ao campinho, me chamou e disse que também queria jogar. Os moleques não queriam, já que tinham medo do seu tamanho assustador. Eu deixei, pois tive pena. Jogou bem. E deste dia em diante ficamos amigos.
Ele nunca foi à escola, mas sabia contar até vinte, pois este era o número de pássaros que tinha. Era um grande “pegador” de periquitos e conseguiu apanhar todos sozinhos.
Eu tinha só dois, um australiano que foi comprado na passareira e um silvestre que ganhei dele. Deixei-os para ele tomar conta quando me mudei. Adorou a idéia de cuidar deles para mim.
Seu nome era Carlos e seu maior desejo era ser um pássaro, só para poder voar livre pelo céu. Embora gostasse de prendê-los em gaiolas.
O primeiro pássaro que teve caiu no quintal depois de ter trombado na parede, ele tratou do bichinho e este ficou bem.
O pássaro precisava de alguém para cuidar dele, porque quebrou uma das asas, e o Carlos precisava de algo para lhe fazer companhia, pois sempre foi solitário até arrumá-lo.
O Carlos ria adoidado quando colocava o periquito no ombro e este lhe puxava os fios de cabelo. Se colocassem a mão no Carlos, ele começava a palrar alto, agitava a asinha boa e quando pegava a mão da pessoa, beliscava com força até cortar e sangrar. O Carlos ficou uma semana sem sair de casa quando o bicho morreu. Depois disto não capturou mais nenhum passarinho e disse que ia soltar os outros. Não soltou.
(...)
Alto, magro, com uma cabeça enorme, ele era alvo de piadinhas e apelidos. Eu também entrava na dança.
- Lá vai o bobão acompanhado do bobinho – diziam quando passávamos na rua.
Nem ligávamos para o que falavam.
(...)
Meses antes de nos conhecermos ele achou jogado na rua um alçapão quebrado, depois de consertá-lo, colocou a “chama” dentro e conseguiu capturar um periquito que trocou por uma gaiola velha. Dias depois capturou outro periquito e assim foi aumentando sua criação.
Para alimentá-los, catava restos de frutas e legumes nas feiras. Ficava por horas limpando as gaiolas e conversando com os bichos.
(...)
Um dia fomos pegar periquitos na matinha e eu levei um tiro de espingarda de um moleque que estava caçando. Uma das balinhas pegou sob o meu braço esquerdo e chegou perto do coração. Desmaiei e o Carlos me carregou por um quilômetro até o hospital. O médico falou que eu só não morri porque fui socorrido. Ficarei devendo isto pelo resto da vida ao meu grande amigo.
(...)
Lágrimas rolam em meu rosto, tenho saudade daquele tempo.
Hoje estudo na faculdade em outra cidade e fazia quatro meses que não nos víamos.
Sua mãe está inconformada. Coitada. A minha tenta em vão confortá-la. Eu quero me aproximar do caixão e dizer para ele sair dali.
-Vamos pegar periquitos – digo insano.
Os meninos, agora adultos, vêm me dar pêsames.
Dói.
Afogou-se no riacho aonde sempre íamos. Ninguém conseguiu ajudá-lo. Os periquitos ficaram órfãos e eu perdi um amigo.
O carro fúnebre chega. Fecham o caixão e o colocam no carro. É muito rápido e quando quero tirá-lo já é tarde.
Choro.
O carro sai e um pequeno cortejo de pessoas vai atrás.
- Se eu tivesse um alçapão maior, pegaria um urubu – dizia.
Olho para o céu e vejo-o subindo. Ele me acena. Também aceno.
- Anjos, tenham cuidado, o Carlos está chegando – digo alto.
Seu corpo foi para o chão e sua alma foi para o céu. Realizou seu sonho – voou como os pássaros.

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