sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

O homem que não sabia ser deus


ele queria ser um deus

 
queria fazer e desfazer
mandar e desmandar
fazia e desfazia
mandava e desmandava, erroneamente

 
queria guiar as pessoas
pelos caminhos corretos

 
perdoar os pecados
do mudo
como um deus faz
 

queria
guardar dos males
salvar do abismo
salvar do fogo do inferno

 
queria
levar ao delírio
queria condenar
e depois absolver
e queria curar os enfermos
crucificar, e ressuscitar
 

não pode ser um deus
por que não tinha céu
não era onipresente
ele cometia erros, tinha falhas

ninguém orava
ou pedia algo para ele


não pôde ser um deus
pois ninguém lhe ouvia
não queriam ele como um deus
não tinha seguidores

 não sabia que para ser um deus
precisava de piedade
sabedoria
paciência
amigos e não servos

 
queria ser um deus
porém tornou-se um diabo

Papo de Astrólogo


 

Eu passava na Rua Comendador João José Jerônimo, em frente ao correio, quando avistei de longe o Zé. Fazia uns dois anos que não conversávamos, ele estava meio diferente, um pouco mais gordo, caminhava em minha direção e ele só me viu quando pronunciei o nome dele.

-          José Heitor Pereira Silva Manganês Santos do Porto Filho.

-          O que? Bel! É você? - Falou espantado.

-          Sou eu Zé!

-          Como é que você está?

-          Tudo jóia. E você?

-          Vou bem.

-          Você me parece muito bem. Está até mais moço.

-          Que nada, você está bem melhor.

-          É bom te ver rapaz. E seu irmão Totó, cadê?

-          Eu não o vejo já faz um tempão.

-          É mesmo?

-          É. Desde o enterro.

-          Que enterro?

-          O dele.

-          O dele? Ele Morreu?

-          Faz uns seis meses.

-          Sério?

-                Ele tava, mas a mulher dele não. Chorava que nem uma desgraçada.

-          Deve ser brincadeira. Você só pode estar brincando.

-          Às vezes eu brinco com meu filho.

-          Você se casou?

-          Não. É produção independente.

-          Eu sei, aconteceu um acidente.

-          É.

-          Seu irmão que morreu... Ele era o gêmeo?

-          Não. Câncer.

-          Câncer?

-          É. Igual a mim.

-          Nossa! Você também! Essas coisas são horríveis.

-          É.

-          Mas você está bem?

-          Estou.

-          E o outro? O Tié, onde anda?

-           Ele não anda, sofreu um acidente e perdeu o movimento nas pernas.

-          Coitado! Logo ele que jogava bola?

-           Não. Quem jogava bola era o Tito meu irmão mais velho. O Tié é o mais novo.

-           Lembrei-me disto quando te vi lá longe – falei - eu sempre fazia confusão entre eles dois, porque se parecem muito apesar de terem idades diferentes.

-           Todos se confundiam. Mas eu sempre fui mais magro que eles.

-           Ainda bem que eu não errei o seu nome – falei.

-           É.

-           Mas os nomes deles eu sempre trocava - tentei desconversar, mudar de assunto, para não ficar naquela conversa chata, mas o cara só tinha notícia ruim. Mesmo assim arrisquei outra pergunta.

-          E sua irmã?

-          Qual delas?

-          A mais nova. A que eu namorei.

-          Ela era virgem.

-          Era?

-          Era.

-          Mas acabou achando alguém?

-          Achou. Um escorpião.

-          Escorpião?

-          É. A coitada morreu.

-          Morreu? E não teve jeito?

-          Não, essa combinação não tem jeito.

-          Não a levaram ao médico?

-           Levamos, mas não adiantou nada. Ela foi definhando e acabou morrendo.

-          Nossa! Que terrível.

-          É.

-          Ela me parecia tão forte.

-          Não aguentou.

-          E o seu pai? Como está? - tentei mudar de assunto novamente.

-          Agora está bem.

-          Que bom. Ta fazendo o que?

-          Ta descansando.

-          De férias?

-          Não. Morreu.

-          Também?

-          É.

-          Mas ele era tão forte. Vivia sossegado lá na fazenda.

-          É, mas eu previ isto também.

-          Como assim?

-           Touro! Touro é um ser que em uma hora ta sossegado e repentinamente vem o ataque e pronto, acabou-se.

-          Coitado! Deve ter sido horrível para sua mãe?

-          Se ela tivesse visto teria sido.

-          Ela não viu?

-          Não pôde ver. Tinha morrido dois meses antes.

-          Também?

-          É.

-          E ela foi o que?

-          Ela foi peixe.

-          Peixe? Que tragédia.

-          É.

-          Morreu engasgada?

-          Não. Caiu no rio.

-          Então era piranha?

-          Não. Minha mãe era descente e não piranha.

-          Não! Quero dizer se foi piranha que atacou ela.

-          Não. Ela é que não sabia nadar e morreu afogada.

-          Quanta desgraça.

-          É.

-           Bom, eu preciso ir agora - tentei novamente mudar o rumo da conversa e sair dali. Aquela conversa me deixou muito abatido.

-          Eu também preciso ir.

-          Até logo.

-          Até logo. Foi um prazer conversar com você mais uma vez.

-          Até mais.

Fiquei pensando nas coisas que ele havia me falado. A família toda se acabou, uns morrendo outros sumindo, o irmão ficou deficiente e ele ainda estava sossegado como era antes. O papo dele era a coisa mais estranha do mundo, parecia que estava dopado. Os irmãos morreram. O mais novo morreu de câncer, o irmão mais velho sofreu um acidente, a irmã que não se casou, e que ele achava que era virgem, morreu de picada de escorpião, o pai, um touro atacou a mãe morreu afogada em um rio que tinha peixe. Que coisa estranha parece até Horóscopo.

 

sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

Pequeno Manual de Recados


Palavra do Autor

 

Este manual foi escrito para mostrar os vários tipos de recados, bilhetes ou outros, que as pessoas costumam deixar escritas, para que outras leiam. Alguns são cômicos, outros trágicos, mais a maioria mostra que são inúteis ou tudo isso junto.

 Alguns nomes, quando aparecem, são apenas fictícios e estão assinalados. Não quero com este Manual menosprezar ninguém e se alguém se identificar com algum deles, me perdoe, pois não é nada pessoal. Como se trata de um manual fique a vontade para aprender e usar os recados ou bilhetes que lhes convierem.

 Queria poder manter alguns como foram encontrados, originais, mas, a maioria já estava estragada, outros por causa da caligrafia, que poderia ser reconhecida, e também por dificultar a impressão, sem falar nas correções ortográficas que foram feitas, tornou-se então impossível.

 

 

1 - Bilhete anônimo, encontrado por um garçom na mesa de um bar.

 

Hoje, os problemas vieram morar em minha cabeça. Aquele amor já esquecido voltou a habitar em minha mente. As lembranças de Helena e de Jasmim não saem do meu pensamento. Tem também as contas de água, de luz e a conta do bar que ficam martelando aqui no meu cérebro. Tudo está uma confusão aqui dentro e o João Maluco ainda tenta estourar os meus miolos por dentro.

 

E logo abaixo no mesmo bilhete estava escrito com outra caligrafia:

 

Cobra aluguel deste povo todo que eles saem daí.

 

Crítica e conclusão do autor:

O garçom jurou que não foi ele que deu a resposta, e disse que não viu mais o cara do bilhete, nem os moradores da cabeça do sujeito. Ele também não sabe quem é este João Maluco, mas acha que é uma pinga misturada com licor de menta e conhaque que o sujeito tomava.

 Tem gente que não consegue viver em sociedade e com essa mistura que o cara toma qualquer um fica louco mesmo.

 

 

2 - Encontrado na prova de Historia de um aluno de quinze anos:

 

Professora, eu te amo muito, desde a primeira vez que te vi eu te amo, a paixão é tanta que nem consigo raciocinar e fazer a prova.

 

Resposta da professora após a correção da prova:

 

Eu também te amo. Porém nosso amor é impossível, já sou casada e meu marido não é burro.

 

Crítica e conclusão do autor: O aluno tirou zero.

Ele amou de mais a pessoa errada. Professora Ingrata.

 

 

3 – Encontrado em uma prova de matemática de uma aluna de dezesseis anos.

 

Deus abençoe esta professora, marido e filhos, dê muita saúde, felicidade e dinheiro para eles.

Obs.: Estou pedindo para ela já que pra mim não deu certo mesmo, e dizem que se pedir para os outros sempre dá certo. Amém.

 

Crítica e conclusão do autor:

A aluna tirou cinco na prova.

 Se ela tivesse pedido também pelos pais e irmãos da professora, acho que tiraria uma nota sete. È bom saber que ainda existem pessoas que não são interesseiras e que pedem aos Céus pelos outros.

 

 

4 – Encontrada, pelo marido, colado em um portão de residência.

 

Chico não venha hoje. Meu marido vai chegar e não vai querer você aqui.

 

O marido chega encontra este bilhetinho no portão da sua casa. Ele vai pensar o que?

Não fiquei sabendo também se a mulher apanhou ou se houve divórcio.

 

Crítica e conclusão do autor: O marido não pode tirar nenhuma conclusão apressada:

- será que era a caligrafia da sua esposa? Alguém pode ter colocado o bilhete no portão só para estragar a felicidade daquele lar, inveja;

- a mulher não seria tão burra de por um bilhete no portão avisando ao amante que o marido chegaria, sabendo que este iria chegar. Ou seria? Burrice;

- o Chico a qual ela se referia poderia ser o outro Chico, ‘aquele’ que vem todo mês. Não poderia? “Chico, não vem não, meu marido esta chegando, dá um tempo.” Amor pelo marido.

 

 

5 – Três bilhetes distintos, encontrados na geladeira de uma residência.

 

Mãe, eu fui até a casa do Beto (fictício) fala pro pai que levei o carro.

 

Pai sai com seu carro, fala pra mãe que eu fui até a casa do Beto.

 

Lucas (fictício) fala pro pai que eu peguei o carro e fala para ele falar para mãe que eu fui até a casa do Beto e se você falar com a mãe fala que eu fui até a casa do Beto e para ela falar para o pai que eu peguei o carro.

 

Crítica e conclusão do autor:

Alguém me disse que o bilhete para mãe estava grudado com um imã de geladeira em formato de coração, o do pai em formado de um litro de cachaça e o do irmão um patinho amarelo.

 O rapaz é bem comunicativo, gosta de tudo muito bem explicado, pelo jeito respeita muito o pai e a mãe, além de gostar muito do amigo e zelar pelo seu lar que é muito importante, bla bla bla, etc.

Ele não foi até a casa do tal Beto, foi namorar. Não tinha carta. Bateu o carro. Tirem suas próprias conclusões.

 

 

6 – Bilhetinho anônimo encontrado no caderno de uma adolescente, cujo nome era Fer (fictício).

 

Fer gosto de você, mas to ficando com a Lê, quando nós terminarmos, vou ficar com você. Me espera.

 

Crítica e conclusão do autor:

A menina rasgou o bilhete. Tive que colar para ler.

O rapazinho não é nada bobo, está com uma pensando na outra, querendo as duas, e não quer que esta fique com outro. É o popular: um olho no peixe outro no gato. Esta com uma querendo a garantia da outra.

 

 

7 – Encontrado por uma esposa perto do telefone.

 

Janaina (fictício) faz aquela feijoada, gostosa. Não vou demorar, mas depois do trabalho vou tomar uma cerveja com o Geraldo (fictício) e depois vamos fazer amor. Eu também te amo.

 

Aqui, o poder da informação está de novo a nos açoitar. Saber se comunicar é realmente uma arte. Saber colocar a pontuação certa também é primordial.

 

 

Crítica e conclusão do autor: Está é bem confusa. Quem é que é gostosa? A feijoada que esta senhora faz, ou ela. Com quem o sujeito vai fazer amor, com sua esposa ou com o tal do Geraldo. E o: “Eu também te amo”, quer dizer que ele além de tudo isto, da feijoada, do trabalho, da cerveja, ele ainda ama sua esposa, ou a ama também assim como ama o Geraldo? Ou será que antes dele sair ela lhe disse que o amava e ele esta respondendo? Bem, ela entendeu. E, depois de tomar cerveja e comer uma feijoada o cara vai é dormir. Tire suas conclusões meu caro leitor.

 

 

8 – Bilhete de um provável suicida.

 

Minha vida esta uma Merda. A Tina (fictício) me trocou por aquele cachorro do Lino (fictício). Meu patrão é um crápula. O melhor é dar o fim logo nisto.

 

Crítica e conclusão do autor:

Foi encontrado por um faxineiro no pátio de uma empresa, mas nenhum trabalhador desapareceu, ainda.

O jeito é esperar mais um pouco e ver se aparece algum corpo. Pode ter sido alguém só desabafando. E o “O melhor é dar o fim logo nisto”, pode ser só terminar um trabalho.

 

 

9 – Recado que fora escrito na parede de um banheiro de rodoviária.

 

Aqui escondidos, todos fazem o que todos sabem que fazem, e deixam o cheiro para que os outros sintam que os seus cheiros são iguais aos dos outros. Porém não gostamos dos cheiros dos outros, mas suportamos os nossos. Lia (fictício) volta! Sinto falta do seu cheiro.

 

Crítica e conclusão do autor: é um filosofo, e tem razão do que escreveu, porém quem é esta tal de Lia, e o que ela tem a ver com o assunto? De qual cheiro ele está se referindo?

 

 

10 – Encontrado, pasmem, em uma caixinha de doações em uma igreja.

 

12, 17, 32, 48, 49 e 52, são esses, agora faça sua parte.

 

Crítica e conclusão do autor:

Não vou dizer quem me mostrou, é muito pessoal.

Um lugar estranho para se por um bilhete. Pretensão deste sujeito de escolher os números e dizer, “agora faça sua parte” ou “agora se vira”. Não vou negar que já pensei nisto também.

 

 

11 – Encontrada escrito na parede do banheiro de um bar.

 

"Bebo porque é liquido. Se fosse sólido, comê-lo-ia"; se fosse pó, cheirá-lo-ia; se fosse enrolado, fumá-lo-ia, se fosse gás, respirá-lo-ia; se fosse aerossol, espirrá-lo-ia na garganta e se fosse um gel, esfregá-lo-ia em minha língua.

Jânio

 

Crítica e conclusão do autor:

Não contente do que disse o Jânio Quadros, ele criou algo a mais e ainda assinou com o nome Jânio.

É mais um poeta e gosta mesmo de tomar umas e outras. Será que ele se chama Jânio mesmo? Ou será que é Gênio? Se eu o conhecesse cumprimentá-lo-ia.

 

12 – Recados em forma de frases. Encontrados em uma carteira de um curso de teologia.

 

Quem com ferro fere, com ferro será ferido, a menos que more na casa do ferreiro, porque lá o espeto é de pau.

 

Os últimos serão os primeiros, a não ser se for um louco matando todo mundo, antes de se suicidar ele será o primeiro a matar e o último a morrer.

 

Crítica e conclusão do autor: Não tem nem o que falar.

 

 

13 – Foi escrita em uma mesa onde funciona um AA.

 

A mesma mão que te puxa quando você está à beira do abismo pode ser a mesma que pode te empurrar depois.

 

Crítica e conclusão do autor:

Alguém não está seguindo as regras do AA.

Ou esta pessoa está mal intencionada ou desconfiada de alguém

 

 

14 – Bilhete anônimo encontrado em uma caixa de sugestões em uma escola técnica.

 

Uma mulher é pouco, duas dá muita despesa e três sogras ninguém merece.

 

 

Crítica e conclusão do autor: Este rapaz está morto nas mãos da viúva.

 

 

15 - Encontrado sobre um Túmulo onde o epitáfio dizia o seguinte:

 

Aqui jaz um Homem generoso e bom pai, bom marido e um exemplo de amigo.

 

O recado dizia o seguinte:

 

Você pintou no lugar errado o certo é esse azul ao lado.

 

Crítica e conclusão do autor: O pintor pintou no local errado.

Alguém já disse tudo.

 

 

O metamorfismo dos sete pecados capitais e de outros


Gula, Avareza, Luxúria, Ira, Preguiça, Vaidade e Orgulho.

 

Um Cientista, homem inteligente, com duas faculdades, doutorado em robótica, mestre de uma universidade federal, entrou em sua máquina, satisfeito com os experimentos que fizera e com os resultados que obtivera anteriormente, programou, data, hora e coordenadas no computador, ligou alguns botões, puxou uma alavanca e o aparelho rodopiou velozmente soltando jatos de vapor e desapareceu.

Em outro lugar, um apito ecoou, um pequeno redemoinho apareceu do nada, fazendo os galhos das árvores chacoalharem e a máquina do tempo surgiu no meio da poeira e das folhas secas que voavam.

Depois dos minutos que ficou desacordado, o cientista, condutor da máquina, despertou e ficou boquiaberto com o que acabara de acontecer: voltou milhares de anos no tempo, surgindo em um lugar que se aparentava com o paraíso descrito nos contos e mostrado nos filmes de ficção.

Saindo de sua máquina, começou a fazer uma excursão pelo local em que havia chegado. Passou por um grande pomar onde centenas de árvores frutíferas de dezenas de qualidades diferentes, expunham seus frutos maduros para quem quisesse comê-los. Também existiam ali, vários animais, que correram amedrontados com o barulho da máquina e que agora voltavam curiosos para saber quem era aquela criatura estranha que invadia seu habitat. Eram de várias espécies, umas conhecidas e outras que o cientista nunca vira antes.

Depois de algum tempo caminhando pelo grande pomar, o cientista avistou um grande jardim cheio de flores perfumadas. Dezenas de orquídeas, rosas, margaridas, bromélias, e crisântemos, todas multicoloridas. Era um banquete para os pequenos beija-flores, borboletas e abelhas que voavam de uma à outra sugando néctar. Ele sentiu um misto de alegria e de espanto.

Porém, seu espanto foi maior quando ele viu um homem completamente nu saindo de um casebre de madeira coberta por capim. Era um rapaz jovem e magro de cabelos longos e negros. Carregava uma espécie de vasilha feita de cipós trançados e rumou para os lados do pomar por onde o cientista acabara de passar. Foi-se trôpego e desapareceu por entre as árvores.

O cientista imaginou que realmente havia voltado muito no tempo. Provavelmente na época que tinha escolhido e programado em seu computador. No tempo da criação.

Aproveitando-se da ausência do outro ele vistoriou a pequena casa. De aparência humilde por fora e por dentro, o casebre continha apenas um local no chão coberto por peles de animais, provavelmente a cama, e um pote de barro com algumas frutas apodrecidas.

Ao retornar para fora ele ouviu o barulho de água batendo contra pedras, como se fosse uma cascata, e procurou saber de onde vinha. Apurou os ouvidos e escutou junto ao barulho das águas uma voz suave que cantava uma melodia ininteligível. Ele andou por entre os arbustos e poucos metros depois avistou ao longe um pequeno rio de águas cristalinas e mais longe, viu uma mulher que se banhava nua em suas águas. A bela mulher, ainda jovem, tinha cabelos longos e pretos, seu corpo era todo esguio e sua pele rósea brilhava ao sol. Levava sobre uma das orelhas uma linda orquídea amarela e, amarrados nos pulsos, braceletes de contas e de sementes. Ele comprovou então que aquilo tudo era o Paraíso.

Ele ficou escondido atrás dos arbustos durante vários minutos vendo aquele Ser fascinante, que só podia ser uma Iara, banhar-se e cantarolar. Olhou para todos os lados certificando-se de que estava só, porém não estava. Em sua frente, um pouco à direita e enrolada em um galho de árvore, cujos frutos se assemelhavam a maças, uma criatura também olhava a moça com muita curiosidade. Era uma grande serpente. Um arrepio de terror passou pelo corpo do cientista quando ele viu o verdadeiro tamanho do animal. A criatura tinha cerca de dois metros enrolados no galho, mas seu corpo estendia-se pelo chão sobre a folhagem por mais uns três e sua cabeça podia ser comparada com a de um cão pastor alemão.  Sem perda de tempo ele apanhou no chão um galho forte. Caminhou sorrateiramente por entre os capins tentando não fazer barulho que pudesse despertar o ofídio que estava absorto no exame da jovem no rio. Levantou o galho e desceu violentamente sobre a cabeça do animal. Quando este tentou atacar o cientista, recebeu novamente várias pancadas, sempre fortes e aplicadas bem no centro da cabeça. O animal não teve chance e ficou dependurado no galho. A força utilizada foi tão grande que a cabeça do animal ardiloso ficou esmagada e seu sangue todo se exauriu. “Esta criatura nunca mais fará mal a alguém” - pensou.

A mulher no riacho mergulhara na poça que se formava na queda da cascata e não ouviu e nem viu o que aconteceu.

Ele continuou a olhar aquela fada se refrescando nas águas do riacho. Ela mergulhava e retornava, mergulhava e retornava, brincando na água. Ele se aproximou da margem do riacho, mas enquanto caminhava, pisou em um galho seco, quebrando-o, e o barulho despertou a bela ninfa do seu banho infinito. A curiosidade nasceu naquele instante e ela veio para ver quem estava ali. E o cientista que viajava no tempo não conseguiu se esconder – e ficou enfeitiçado por aquele corpo fascinante.

- Quem é você? - Perguntou curiosa.

- Meu nome é serpente – mentiu pensando no animal que acabara de matar - e sou um viajante do tempo. E qual é o seu?

Ela lembrou-se que o homem com que vivia dava nomes a todos os Seres ali existentes. O Homem deu nome às ovelhas, aos porcos, aos coelhos e aos outros animais e se esquecera de dar um nome a ela.

- O meu é galinha – mentiu lembrando-se do primeiro nome que lhe veio à mente. E surgiu a mentira.

- Galinha?- falou assustado o viajante. E depois se calou, não perguntou o porquê dela ter mentido, pois para ele não havia nenhuma importância naquilo.

Ele caminhou para mais perto do rio, descalçou-se e entrou na água, ficando bem perto dela. Ela sorriu e inocentemente ajuntou as mãos, encheu-as com água e jogou sobre a cabeça dele. Ele também sorriu para ela, depois, lavou o rosto e bebeu daquela água. Ela sentou-se no leito e começou a jogar água nele, brincando como uma criança.

Ele ficou ensopado. Retirou toda a roupa e foi se sentar na areia ao lado dela. Ela viu que ele tinha o corpo como o do outro homem que ela conhecia.

Como estavam sob um pé de frutas comeram e se lambuzaram com eles. E ele, vendo sua simpatia e estando encantado por ela, beijou-a e se deitou com ela na areia, ficando ali juntos por algum tempo. E foi assim que nasceu a luxuria.

Dormiram na areia. E ao acordarem comeram outros frutos. Muitos frutos. Amoras silvestres, maças, uvas, ingás e outras que ele sequer conhecia. E assim nasceu a gula.

Pouco tempo depois, eles ouviram um barulho de passos sobre o capim, ela se levantou assustada.

- É ele – disse. - Está de volta.

- E o Cientista se lembrou do homem nu que vira quando chegou e resolveu sair correndo. Juntou suas roupas e disse adeus. Pulou uma cerca natural formada por galhos e trepadeiras e sumiu na mata. Covardemente fugiu.

            A mulher não compreendeu aquela fuga. Chamou-o. Tentou ir atrás dele, mas ele desapareceu pela mata adentro.

            O homem nu chegou trazendo muitas frutas. Ofereceu para ela. Ela não quis comer. Já havia comido muitos frutos.

- Uma Serpente viajante do tempo esteve aqui e nos comemos os frutos desta árvore. – disse para o homem que vivia nu.

- Desta árvore? Eu já lhe disse que este fruto é proibido e mesmo assim você comeu?

- Estes frutos são deliciosos – explicou-se. E assim surgiu a desobediência.

            O homem não quis conversar. Ficou bravo e foi embora para sua casa deixando-a sozinha. E a mulher ficou triste por não ter mais ninguém para quem contar às novidades que vivenciara. Ficou magoada com o homem que vivia nu e com a Serpente viajante do tempo.

 

Horas depois, o homem saiu para procurar a serpente e encontrou-a morta. Viu que seu sangue escorreu até o rio e deixou suas águas vermelhas e seus peixes mortos.

- Eu encontrei a serpente e ela está imóvel – disse para a mulher quando voltou - Parece que a cabeça dela estourou. E sobre ela já pousam moscas e outros insetos.

-Onde? Onde você a encontrou?

- Próximo do rio.

A mulher correu para o rio pensando em encontrar a Serpente viajante do tempo, porém só encontrou a gigantesca serpente morta.

Ela procurou o viajante do tempo por muitos dias na beira do rio, no jardim, no pomar e em todas as matas que conhecia. Chamava por seus nomes e não obteve nenhuma resposta para suas dúvidas. De onde veio? Para onde foi? E ficou muito tempo sem se banhar nas águas vermelhas do riacho, com medo de morrer como a serpente e os peixes.

Não existia mais a serpente que se parecia com homem, e da outra serpente, a que se arrastava, agora só existiam os ossos. E a mulher ficou muito triste e depressiva e assim nasceu a melancolia.

Durante longo tempo, em seus sonhos, ela o via sorrindo e se banhando no riacho. Jogavam água um no outro, se escondiam atrás das pedras e mergulhavam nas águas mais fundas dos rios. Depois comiam os frutos proibidos e após descansarem ela o via a seu lado com a cabeça estourada. Ela acordava assustada e molhada de suor. E assim surgiu a saudade.

 

Passavam dias e noites e sua barriga crescia.

- Não vá. Não! - ela dizia nos sonhos. E durante seu sono ele aparecia novamente coberto de sangue.

Passaram muitos dias e sua barriga estava muito grande.

            E o homem com quem ela vivia não foi mais colher os frutos, e não deu mais nome aos animais que ali apareciam, e também não foi trançar suas redes e seus colares, e nem fazer potes com o barro do rio. E foi assim que surgiu a preguiça.

E o dia dela dar a luz chegou. Ela descobriu que era como os outros animais, que podia fazer dentro de si outro ser como os bichos faziam. Nasceu uma criança linda. Ela quis escolher um nome como o homem fazia com os animais. Ele, preguiçoso como estava, deixou e riu pensando que ela não seria capaz. Ela queria ter dado o nome de Serpente, mas o homem proibiu, pois já existia um animal que se chamava Serpente e ela deu o nome de Viajante à criança.

E passou algum tempo. E as águas do rio ficaram cristalinas novamente. E em um lindo dia de sol, enquanto a criança dormia, ela chamou o homem para se banhar. Eles se lavaram, brincaram de jogar água, depois deitaram na areia, comeram dos frutos da árvore da beira do rio. E ficaram felizes. E Isto se repetiu muitas vezes. E outra vez a barriga cresceu e outra vez uma criança nasceu e também era bela. E ela lhe deu o nome de Tempo.

As crianças cresceram e viram que tinham muitas diferenças em seus gostos. Um gostava de cultivar a terra e colher frutos, e o outro gostava de pastorear e caçar os animais.

 

E o viajante do tempo voltando ao seu tempo, fugido, leu em seus livros de história, viu que ele nada tinha alterado do passado e do presente. Ficou feliz de seu espetacular passeio e decidiu voltar ao passado o mais rápido que pudesse. Preparou sua máquina para voltar ao passado, programando-a para cerca de vinte anos depois da época que havia ido primeiro. Colocou tudo no automático. Descansaria e partiria assim que amanhecesse o dia, no seu tempo.

Durante a noite ele recebeu a visita de sua irmã mais nova, de seu cunhado e de sua sobrinha, a qual ele era padrinho e havia escolhido o nome.

            Enquanto ele foi buscar café na cozinha, sua sobrinha foi até ao laboratório no porão e avistou a máquina. Curiosa, se sentou na poltrona da máquina. A porta se fechou. Zum. Automaticamente a máquina a transportou para a época que estava programada. A moça foi para o passado.

 

            Ela ficou assustada no princípio, mas ficou encantada logo em seguida com a beleza do jardim. Desceu ainda tonta do aparelho e viu as borboletas de várias cores e sentiu o perfume intenso das flores.

            Caminhou explorando aquele lugar estranho até se deparar com dois belos rapazes que se banhavam nas águas cristalinas de um rio. E viu que eles estavam sem roupa e que não tinham pudor. E sentiu o cheiro de terra em um, e o cheiro de bicho no outro. E eles sentiram que ela tinha cheiro de flores e que de sua boca saiu um hálito refrescante. E eles se apaixonaram por ela. E assim nasceu o amor. E ela ficou abismada com os dois. E eles queriam saber quem era ela.

            - Eu?  Sou a Eva. – respondeu abobalhada. Pensando até que fosse alguma brincadeira.

- E vocês quem são?

- Eu sou o Viajante – falou o mais alto, dando-lhe uma flor.

- E eu sou o Tempo – falou o mais sorridente, fazendo uma borboleta sair voando de suas mãos.

Ficaram se olhando embriagados pela beleza que tinham.

- Eva?Eva! - Murmuravam os dois quase soletrando.

Nasceu um diálogo entre os três. E os machos disputavam para ver quem mais perguntava e quem mais obtinha respostas da jovem.

Conversaram por muito tempo e lhe deram frutas e carnes para comer e até trouxeram, em suas bocas, água para que ela bebesse.

 

            Quando anoiteceu ela conheceu a mulher e o homem, pais dos rapazes, e ficou sabendo quem eram aquelas pessoas, e sentiu orgulho do tio e de sua invenção. E o orgulho começava a nascer.

            Ela gostou do passeio, mas queria retornar ao seu tempo. Querendo ir embora para o seu tempo, porém não conseguia fazer a máquina funcionar. Apertou todos os botões, mexeu no computador e não obteve o resultado que queria. Passou a noite na pequena cabana e viveu junto deles por alguns dias.

Ganhava frutos, ganhava ovelhas e até o homem mais velho lhe dava presentes. Cestos, colares, redes, tudo era presente.  Ela chorou muitas vezes, pois queria voltar para casa. Era muito triste para uma moça de sua idade ficar ali sem ter o luxo com o qual estava acostumada.

Ela ensinou a mulher a se cobrir com trajes feitos de palhas e folhas, a se pentear com os dedos, a se perfumar com as flores e a se maquilar com tintas retiradas de sementes. E assim nasceu a vaidade.

            A mulher descobriu certa vez quando se banhavam juntas, que elas tinham os corpos iguais, e era por isso que os homens  agradavam tanto aquela moça. A mulher percebeu que Eva passou a ganhar os melhores frutos e os presentes mais bonitos dos homens. Teve pensamentos e sonhos estranhos e depois passou a não falar ou ficar perto de Eva. E nasceu a inveja.

            Certo dia a mulher chamou o homem para junto dela e lhe disse que os filhos deveriam se mudar dali. Porque era assim que os pássaros e os bichos da mata faziam.

            Quando eles se mudaram, Eva resolveu ir se banhar com os rapazes e eles se sentiram ainda mais atraídos por ela.

E Tempo passou a dividir seus animais só com Eva. Enquanto seu irmão que sempre trazia frutos para casa só os entregava para ela. O Tempo não podia colher mais frutos já que seu irmão Viajante é quem tomava conta dos pomares. E a carne, só o Tempo podia comer, visto que ele era o pastor dos animais. Nem para seus pais ele repartia, para que esses não descem para seu irmão Viajante. E se sentiu poderoso, por poder criar animais e conseguir caçá-los. E assim orgulho surgiu de vez.

 Cada um queria tudo só para ele, para mostrar para Eva que ele era o melhor, o mais poderoso e o mais rico. Foi assim que nasceu a avareza.

Eva queria os dois, pois com os dois ela ficava completa. Contudo quando eles ficavam juntos com ela eles sempre brigavam. Precisou escolher um deles. E como não tinha mais esperança de retornar para o seu tempo, precisava se adaptar a aquela situação. Eva escolheu o Tempo porque ele era mais caridoso e mais bondoso e tinham quase a mesma idade dela. Enquanto que o Viajante era muito mandão e era muito parecido com os seus familiares, com sua mãe e com seu tio.

            E o Viajante sentiu ciúmes e ódio e assim nasceu a ira.

E o Tempo desfilava com sua amada e com seus animais pelos jardins e pelos pomares de seu irmão.

Viajante jogou frutos podres em seu irmão e em Eva, sujando-os. Ela se lavou no rio e colocou as roupas com que viajara para que o outro não a visse mais nua. Em um momento de ira eles brigaram violentamente. Viajante matou seu irmão Tempo. E aconteceu o primeiro homicídio.

E Viajante queria a jovem Eva para ele. Mas ela teve muito ódio dele e correu para casa do homem e da mulher, para que a socorressem. Eles não estavam lá e Eva correu para a mata tentando se esconder enquanto o homicida a perseguia raivoso. Ela correu até perto da máquina do tempo, abriu a porta e entrou nela para se esconder. Passaram-se alguns minutos e Viajante apareceu. Tentou abrir a porta. Esmurrou a máquina. Chutou-a e ela não abriu. Luzes começaram a piscar dentro da máquina e Eva ficou muito apavorada e com medo de que Viajante consegui-se abri-la. Um apito ecoou por entre as árvores e instantaneamente Eva apareceu no laboratório do seu tio.

Ela abriu a porta e saiu chorando, mas feliz por ter voltado. Subiu as escadas rapidamente e ao entrar na sala viu que seu tio chegava com o café na bandeja.