09 - Homicídios em dias de chuva

Quando olhei para ele tive o pressentimento que seria o dia da minha morte.
Ele apenas ficou ali, parado, me olhando. Eu não via seu rosto sob o gorro da blusa, eu via apenas o brilho fraco de seus olhos.
Sabia que ele me olhava, mas não via apenas meu corpo, ele me olhava e via minha alma. Acho que ficamos parados ali uns quinze minutos.
- É você... Então... - sussurrou com voz trêmula.
Uma chuva fina começava a cair. Agitei meu guarda-chuva e esperei que o sujeito não se movesse e, que não viesse para cima de mim. Olhei para os dois lados da rua, não havia ninguém para pedir ajuda, para servir de testemunha, para me ver ali com aquele ser.
Lembrei-me de como tudo começou.

O primeiro caso apareceu no jornal como se fosse um assalto.
A matéria dizia: “Homem branco, cerca de vinte cinco anos, é encontrado na sarjeta. Vítima da facada de um assaltante.”
No dia seguinte, quando ele foi identificado, a matéria do jornalzinho sensacionalista, disse: “Homem encontrado morto tinha 28 anos. JCF foi encontrado ontem com uma perfuração no peito, provavelmente uma facada. O Corpo foi encontrado na sarjeta, molhado e sujo, provavelmente fora arrastado pela enxurrada por cerca de cem metros.”
Parecia realmente um assalto. Com a vítima não foram encontrados documentos e nem dinheiro, estava apenas com as roupas do corpo e um guarda-chuva preso em sua cintura.

O segundo corpo foi encontrado dois dias depois pendurado na grade em frente a casa onde morava.
“Novamente assalto? Improvável.” Dizia o jornal.
O jornalzinho estava certo. Ele tinha a carteira com os documentos e uma bolada em dinheiro. O assassino o matou, mas não lhe roubou nada. Surgiu a hipótese de que alguém tivesse testemunhado o acontecido, assim o bandido fugira sem roubá-lo.
Ninguém apareceu para depor na delegacia, apesar da gorda recompensa.
Coincidência ou não, a vítima era homem, na casa dos vinte e poucos, ele tinha vinte e seis anos, e o estranho era que ele também, como o outro, tinha um guarda-chuva, amarrado na cintura.

Do terceiro corpo em diante a polícia não teve mais dúvidas – era coisa de um serial killer.
Ele foi encontrado em um pasto. “Decúbito dorsal” disse o Médico. Este foi o motivo dele ter água em seus pulmões.
“A perfuração não lhe acertou direto no coração. Ele ficou sangrando e respirando. Agonizou. Chovia muito ontem à noite, entre dez e meia-noite.” Descrevera o jornalista.
“Morrera por volta da meia noite.” Disse o médico. Também tinha um guarda-chuva, fechado a seu lado, coisa comum nestes dias chuvosos.
Foi um falatório na cidade. “Ele ficou estrebuchando de papo pro ar e acabou engolindo água. Só não morreu afogado na chuva porque o sangue acabou primeiro”. Dizia o boato.

O quarto corpo foi encontrado dois dias após o terceiro. Havia hematomas por todo o rosto. “O corpo ainda estava quente”. Saiu no jornal. “Houve luta”. Disse uma pessoa na rua. “Perfurocortante”. Disse o médico. “Talvez uma faca ou um punhal”. Concluiu ele depois para um repórter. “Pode ser o mesmo dos outros casos. Devemos ter cuidado, pois pode ser também outra pessoa querendo imitá-lo”. Disse o delegado aos investigadores.
Não era. Sei que não era. Tudo voltou a minha mente. Passei a comprar o jornal dos escândalos todos os dias depois que apareceu o primeiro corpo.

Minha cabeça começa a doer. O sujeito na minha frente me encara, escondido sob suas roupas. Pode ser alguém conhecido. Acho que jamais saberei ou só saberei se puder ler o jornal amanhã.
Olho novamente para os lados e vejo a rua deserta sendo lavada pelas águas que caem. Nos postes ao longe vejo os brilhos de milhares de gotas quando passam pelo alcance das luzes.
Cai muita água agora. Água que abafará os gritos, se houver. Que lavará o sangue que jorrar da perfuração no coração. Estou estático. Sinto o guarda-chuva na minha mão. Sinto a água escorrendo por meu rosto e braços. O sujeito na minha frente fica em silêncio.

O quinto corpo foi encontrado em uma noite assim, como hoje. Uma foto no jornaleco das desgraças mostra um borrão no lamaçal. Um corpo caído. O sangue exauriu. Era um trabalhador que voltava do serviço. Um pai de família que laborou a noite inteira e voltava para casa.
Hora da morte: “seis”. Saiu no jornal. O criminoso era realmente cruel. Espancara a vítima com golpes de guarda-chuva. Fincara a faca três vezes. “Sinais de luta”. Disse o delegado. “Este cidadão é muito forte”. Disse o médico. “O serial killer é um covarde”. Escreveu no jornal, o repórter, e também sexto assassinado.

O jornal fechou as portas por luto. Prometeram que estes crimes não ficariam impunes. Geraldo Ligeiro, jornalista, 30 anos, foi morto com uma punhalada certeira em seu coração. Foi pego pelas costas. De tocaia. Por vingança. Saía às três da manhã do jornal onde fechara a notícia do quinto corpo encontrado quando foi surpreendido pelo facínora.
Lembro-me agora deste dia, apenas três dias atrás, chovia muito. Eu voltava da casa de um amigo. “Fique aqui hoje, está chovendo muito para você ir.” Disse-me. “Preciso ir tenho um compromisso amanhã cedo” Respondi. “Cuidado com o maníaco homicida”. Disse quando eu já ia longe de sua casa. Cuide-se você – pensei.

Era um bom amigo. Foi o sétimo corpo que encontraram. Morto ontem quando chegava a sua casa. Como os outros, ele e o jornalista, também foram mortos nestes dias de chuva e também tinham com eles um guarda-chuva junto ao corpo, como este aqui, que levo comigo.

Em um poste aqui perto, fios molhados faíscam. Minhas pernas tremem. Sinto medo.
O jornalista foi enterrado no mesmo dia da morte. Havia uma multidão de curiosos. Muitas flores. Muito choro e dor. Seus colegas do jornal não se lembravam de terem visto ele com um guarda-chuva no jornal naquela noite.

Lembro-me do último até agora. O desta madrugada. Facada no coração. Chovia. Um guarda-chuva ao lado do corpo. Não lhe roubaram nada. Outro pai de família que foi morto por um homicida louco. “Agora já são oito”. Escreveu outro jornalista.
A cidade toda está em pânico. As autoridades de sobreaviso.

Meu corpo agora treme todo. A luz do poste estoura e o escuro toma conta do resto do quarteirão. Chove muito. Aperto o guarda chuva na mão. O sujeito na minha frente me encara com seu rosto invisível na escuridão do seu capuz. Sinto que o fim está próximo. Amanhã as estatísticas aumentarão. “Outro corpo é encontrado” – sairá no jornal. “Rapaz de vinte cinco anos”. A minha idade, mesma estatura, peso, cor. Começo a chorar.

- Como pode? Isto é impossível – diz o sujeito na minha frente.
A chuva cai sem parar. E minhas lágrimas rolam junto com as águas da chuva.
Ele levanta as mãos sobre a cabeça e eu coloco a minha dentro do guarda-chuva, que ainda estava fechado. No momento em que ele faz um gesto brusco eu retiro meu punhal do guarda-chuva e enfio em seu peito. Ele não grita.
Quando puxo, o sangue jorra. Ele se ajoelha e tira o capuz. Olho incrédulo e vejo que ele é igual a mim. Chove. Seguro o punhal e vejo minha mão cheia de sangue. Ele tomba para frente. Está morto. Morto. Não compreendo nada. Abro o guarda-chuva e coloco sobre o cadáver, amarrando em sua cintura. Coitado vai ficar todo molhado – penso insano.
“Outra vítima do maníaco do guarda-chuva”. Noticiará o jornal. Jamais descobrirão que sou eu, pois morri hoje.
Ando pela chuva. Minha alma é lavada.

Acordo as nove com o barulho do telefone. Um amigo, que será morto está noite, me diz que morreu um rapaz com a minha cara. “Você tem um irmão gêmeo?” Ele diz. Desligo o telefone. Tinha - respondo. E saio para comprar outro guarda chuva. É o décimo que vou comprar este mês.